Meu
casamento
Os
preparativos para o casamento foram rápidos, e logo percebi meu infortúnio
quando a família do meu futuro marido decidiu que eu teria de abandonar os
estudos. Eu adorava a escola. Era meu refúgio, uma felicidade só minha.
No dia
do meu casamento, minhas primas começaram a gritar e bater palmas ao me verem
chegando. Mas eu mal conseguia ver o rosto delas, pois tinha os olhos cheios de
lágrimas. Avancei lentamente para não tropeçar na roupa, que era grande demais
para mim. Tinham me vestido às pressas com uma túnica comprida de um tom
chocolate desbotado que pertencia à mulher do meu futuro cunhado. Uma parenta
prendera meus cabelos num coque que me pesava na cabeça.
Mal
tinham se passado duas semanas desde que eu fora pedida em casamento. Asd
mulheres comemoraram na minúscula casa dos meus pais; éramos 40. Enquanto isso,
os homens se reuniram na casa de um dos meus tios. Quando haviam assinado o
contrato de casamento, dois dias antes, o evento também fora só para homens. Combinaram
o meu dote em 150 mil riais (cerca de 540 euros).
Ao pôr
do sol, os convidados foram embora e eu adormeci, totalmente vestida. Na manhã seguinte, omma me acordou. Minha trouxinha estava diante da porta. Quando um
carro buzinou, minha mãe ajudou a me cobrir com uma capa e um véu pretos e me
avisou: ”A partir de hoje, você tem de se cobrir quando sair à rua. Agora é uma
mulher casada. É a honra dele que está em jogo.”
Concordei
com tristeza.
No
banco traseiro da picape que aguardava diante da porta, um homem baixo me
fitava. Vestia uma zanna branca
comprida e tinha bigode. O cabelo crespo e curto estava cheio de gomalina e o
rosto, malbarbeado. Não era bonito. Então aquele era Faez Ali Thamer!
Quando
o motor rugiu e o motorista deu a partida, comecei a chorar em silêncio, com o
rosto na janela, enquanto via omma
ficar cada vez menor.
Uma
mulher nos esperava no patamar de uma das casas de pedra de Khardji. Senti na
mesma hora que ela não gostara de mim. Minha sogra era velha, com a pele
enrugada como a de um lagarto. Mandou que eu entrasse. O interior da casa quase
não tinha mobília; eram quatro quartos, uma sala e uma cozinha minúscula.
Devorei
o arroz com carne que as irmãs dele tinham preparado. Depois da refeição,
alguns adultos da aldeia se reuniram para mascar khat. Ninguém parecia se surpreender com minha pouca idade. Mais
tarde, soube que o casamento com meninas pequenas não é raro no interior. Há
até um provérbio tribal que diz: “Para garantir um casamento feliz, escolha uma
menina de 9 anos.”
Como me
senti aliviada quando me levaram para meu quarto! Havia uma esteira comprida no
chão: minha cama. Nem precisei apagar a luz para adormecer.
Preferiria
nunca mais ter despertado. Quando a porta se escancarou de repente, acordei
assustada. Mal abrira os olhos quando senti um corpo peludo e úmido se
apertando contra mim. Alguém apagara a lâmpada, deixando o quarto totalmente no
escuro. Era ele! Reconheci-o pelo cheiro forte de cigarro e khat. Começou a se esfregar em mim.
- Por favor, deixe-me em paz- implorei quase sem ar.
- Você é minha mulher!
Fiquei
de pé num pulo. A porta não estava completamente fechada e, ao espiar um brilho
de luz, saí correndo para o pátio.
Ele correu atrás de mim.
- Socorro! Socorro! – eu gritava, chorando.
Minha voz soou na noite, mas era como se eu estivesse
gritando no vácuo. Corri, ofegando para respirar. Tropecei em alguma coisa, caí
e me levantei pra continuar fugindo, mas ele me pegou, me segurou com força, me
arrastou de volta para o quarto e por fim me jogou na esteira.
Fiquei
paralisada, como se tivessem me amarrado.
Na
esperança de encontrar uma aliada, gritei por minha sogra.
- Amma! Tia!
Não
houve resposta.
Quando
ele tirou a túnica, me enrolei como um caracol para me proteger, mas ele
começou a puxar minha camisola.
Tentei
fugir de novo, gemendo:
- Vou contar para o meu pai!
- Pode contar para o seu pai o que quiser. Ele assinou o
contrato de casamento.
- Você não tem esse direito!
Ele
começou a gargalhar.
- Você é minha mulher. Agora tem de fazer tudo o que eu
quiser!
De
repente, foi como se eu tivesse sido levada por um furacão, jogada longe,
atingida por um raio, e não tive mais forças para lutar. Alguma coisa ardente
invadiu minha parte mais íntima. Por mais que eu gritasse, ninguém veio me
ajudar. Doeu demais. Gritei mais uma vez, acho, e desmaiei.
A fuga
Tive de
me ajustar depressa à nova vida. Não tinha o direito de sair de casa, de me
queixar, de dizer não. Durante o dia, tinha de obedecer às ordens da minha
sogra: “Corte os legumes!”, “Limpe o chão!”, “Lave a louça!”. Se parasse um
instante, ela puxava meu cabelo.
Certa
manhã, eu lhe pedi permissão para brincar com as crianças da minha idade.
“Impossível! Era só o faltava, você sair e arruinar nossa reputação.”
Ele
saía toda manhã e voltava pouco antes do por do sol. Toda vez que o ouvia
chegar, o mesmo pânico me enchia o coração. Quando a noite caía, sabia que
aquilo começaria de novo. A mesma selvageria, a mesma dor, mesma angústia. No
terceiro dia, ele começou a me bater, primeiro com as mãos, depois com um
bastão. E a mãe o estimulava.
Sempre
que ele se queixava de mim, ela lhe dizia: ”Bata nela com mais força ainda. Ela
tem de lhe dar ouvidos; é sua mulher.”
Eu
vivia com um medo permanente. Sempre que podia, me escondia num canto, perdida
e desnorteada. Dias e noites se passaram assim. Sentia saudades de Sana’a e da
escola, dos meus irmãos e irmãs. Pensava em Haïfa, torcendo para que ela não se
casasse como eu.
Certa
manhã, incomodado com meu choro incessante, ele me disse que me deixaria
visitar meus pais. Finalmente! Ele iria comigo e ficaria com o irmão dele em
Sana’a, mas depois, insistiu, teríamos de voltar para a aldeia. Corri para
juntar minhas coisas.
- Está fora de questão você abandonar seu marido! – Eu não
esperava essa reação de meu pai, que logo pôs fim à alegria da minha volta.
Quanto à minha mãem ficou calada e só murmurou:
- A vida é assim, Nujood: as mulheres têm de agüentar.
Mas
porque ela não me avisara? Agora eu estava presa.
- Nujood – repetiu meu pai – agora você é uma mulher casada.
Tem de ficar com seu marido. Se você se divorciar, meus irmãos e primos vão me
matar! A honra vem em primeiro lugar.
Eu
estava andando em círculos, sem ver uma saída. Meu pai, meus irmãos e meus tios
não me deram ouvidos.
Fui
visitar Dowla, a segunda mulher de meu pai, que morava com os 5 filhos num
apartamento minúsculo do outro lado da rua. Subi a escada, tapando o nariz para
não sentir o mau cheiro do lixo e do banheiro comunitário. Dowla abriu a porta
com um vestido preto e vermelho comprido e um enorme sorriso:
- Nujood! Que surpresa ver você outra vez. Bem-vinda!
Eu
gostava de Dowla. Alta e magra, era mais bonita do que omma e nunca ralhava comigo. Mas a pobre mulher não tivera uma boa
vida. Meu pai a negligenciara totalmente. A pobreza a obrigava a mendigar nas
ruas.
Ela me
convidou a sentar no grande fardo de palha que ocupava a metade do cômodo,
junto ao minúsculo fogão onde a água fervia.
- Nujood – arriscou ela -, você me parece muito preocupada.
Abri
meu coração. E minha história pareceu comovê-la profundamente. Ela pensou um
instante, em silêncio e depois serviu o chá. Ao me entregar a xícara,
inclinou-se e me olhou fundo nos olhos.
- Nujood – sussurrou -, se ninguém lhe der ouvidos, você tem
de ir diretamente ao tribunal.
- Aonde?
- Ao tribunal!
Mas é
claro! Num flash, vi imagens de
juízes de turbante, advogados apressados, homens e mulheres indo se queixar de problemas familiares, furtos,
brigas por heranças. Vira o tribunal num programa a que costumava assistir na
casa dos vizinhos.
- Vá ao tribunal – continuou Dowla. – Peça pra falar com o
juiz; o trabalho dele é ajudar as vítimas.
Abracei Dowla
com força, imensamente agradecida. Ela colocou 200 riais na minha mão,
toda a quantia – que ma valia 50 centavos de euro – que conseguira mendigar
naquela manhã.
No dia
seguinte, esperei com impaciência que minha mãe se levantasse.
- Nujood – disse ela, me entregando 150 riais – vá comprar
pão para o café da manhã.
- Sim, omma –
respondi, obediente.
Peguei
a rua que levava à padaria da esquina. Mas, no último minuto, mudei de direção
e segui para a avenida principal. Puxei as dobras do véu sobre o rosto. Dessa
vez, o niqab se mostrou muito útil.
Saltei para dentro do micro-ônibus amarelo e branco que se dirigia ao centro da
cidade, torcendo pra sair do bairro antes que meus pais notassem meu sumiço.
A porta
se fechou. Pela janela, via a cidade passar. “Ponto final!”, gritou o
motorista.
Com
dedos trêmulos, lhe entreguei algumas moedas. Mas não fazia idéia de onde
ficava o tribunal. Andava ansiosíssima. Grudada num poste, tentava organizar os
pensamentos quando avistei um táxi. Já
tomara táxis quando fora a Bab AL-Yemen com Mona.
Levantei
a mão e fiz sinal para que parasse:”Quero ir ao tribunal!”, exclamei para o
motorista, que me fitou espantado. Ele não imaginava como fiquei grata por não
me fazer perguntas.
Com uma
freada forte, ele parou o carro junto ao portão de um prédio imponente. O
tribunal! Desci logo do carro e entreguei ao taxista o resto do meu dinheiro.
By: Revista Seleções Ed.08/11 (Foto: Delphine Minoui)
Amiga Márcia,
ResponderExcluirConfesso que esta cultura é abominável,e que a história desta pequena adolescente no Brasil daria o nome de tráfico de menores, para o sexo, uma história triste,e pior com os pais de acordo, confesso que infelizmente esta garota perdeu os seus melhores valores e suas maiores alegrias aos 10 anos de idade...
Beijos