Por: Nujood Ali e Delphine Minoui (foto: Delphine Minoui)
Revista Seleções, ed. 08/11
Nujood com Shada. |
O Juiz
O juiz
Abdo não consegue esconder sua surpresa.
- Você quer se divorciar?
- É.
- Mas...Quer dizer que é casada?
- Sou.
Os
traços dele são distintos. A camisa branca destaca a pele azeitonada. Mas,
quando escuta minha resposta, seu rosto se entristece.
- Com essa idade? Como já pode ser casada?
Sem me
preocupar em responder à pergunta, repito com voz decidida:
- Quero o divórcio.
Nervoso,
ele começa a coçar o bigode. Ah, se pudesse me salvar!
- E porque quer o divórcio?- continua.
Olho-o
bem nos olhos.
- Porque meu marido me bate.
É como se eu lhe tivesse dado um tapa na cara. A expressão
dele se paralisa de novo. Sem hesitar, me pergunta:
- Você ainda é virgem?
Engulo
em seco. Sinto vergonha de falar dessas coisas. Mas nesse instante entendo que,
se quiser vencer, tenho de falar.
- Não. Eu sangrei.
Ele
fica chocado. Consigo ver sua surpresa e sua tentativa de ocultar as emoções.
Depois respira fundo e diz:
- Vou ajudá-la.
Sinto-me
aliviada. Vejo-o pegar o celular e noto que está com a mão trêmula. Com sorte,
ele agirá depressa e naquela mesma noite poderei voltar para a casa dos meus
pais e brincar com meus irmãos e irmãs como antes. Divorciada! Sem aquele medo
de ficar sozinha, ao anoitecer, no mesmo quarto que meu marido.
Um
segundo juiz vem nos encontrar na sala e acaba com meu entusiasmo.
- Minha criança, isso pode levar muito mais tempo do que
você pensa. E, infelizmente, não posso lhe prometer o que quer.
Esse
segundo homem é Mohammad AL-Ghazi, o juiz-presidente. Ele diz nunca ter visto
um caso como o meu. Os dois me explicam que, no Iêmen, é comum as meninas se
casarem muito jovens, com menos do que a idade legal de 15 anos. Uma tradição
antiga, acrescenta o juiz Abdo. Mas até onde ele sabe, nenhum desses casamentos
precoces acabou em divórcio, porque nenhuma menininha, até então, tinha ido ao
tribunal.
- Teremos que achar um advogado- explica Abdo.
Será
que eles entenderam que, se eu voltar para casa sem garantias, meu marido irá
me buscar e a tortura recomeçará?
- Quero me divorciar!- Franzo bem a testa para mostrar que
estou falando sério. O som da minha própria voz me assusta.
- Acharemos alguma solução – murmura AL-Ghazi, endireitando
seu turbante.
O
relógio acaba de dar duas horas, quando todos os escritórios se fecham. Hoje é quarta-feira,
e o fim de semana muçulmano está prestes a começar.
- Não há a menor chance de ela voltar pra casa –
continua. Abdel Wahed um terceiro juiz,
se apresenta para me oferecer ajuda. A família dele tem espaço para me abrigar.
Estou salva, pelo menos por enquanto.
Às nove
horas da manhã de sábado, estamos na sala de Abdel Wahed no tribunal, com Abdo
e Mohammad AL-Ghazi, que estava muito preocupado ao dizer:
- De acordo som a lei iemenita, é difícil voc entrar com um
processo contra seu marido e seu pai.
Como
muitas crianças nascidas em aldeias iemenitas, eu não tinha certidão de
nascimento e era jovem demais para entrar com um processo contra alguém. Um
conrato fora assinado e aprovado pelos homens da minha família, e era válido,
de acordo com a tradição iemenita.
- Por enquanto – disse Mohammad AL-Ghazi aos colegas-, temos
de agir depressa. Sugiro que ordenemos a prisão temporária do pai e do marido
de Nujood. Se quisermos protegê-la, é melhor que estejam presos do que em
liberdade.
Prisão!
Será que aba um dia me perdoaria? Fui
tomada pela vergonha e pela culpa.
No
Iêmen não havia abrigo para meninas como eu, mas não podia continuar com a
família de Abdel Wahed, que já,tinha feito tanto por mim.
- Quem é seu tio favorito? – perguntou um dos juízes.
Achei
que a melhor opção seria Shory, irmão do
omma, soldado reformado com certo
prestígio na família. Morava com as duas esposas e os sete filhos num bairro
não muito longe do nosso. É verdade que não se opusera ao meu casamento, mas
pelo menos não batia nas filhas.
Shoyi
não me fez muitas perguntas e deixou que eu brincasse com minhas primas. No
fundo, acho que meu tio ficou tão consternado quanto eu com aquilo tudo.
Nos
três dias seguintes, passei a maior parte do tempo no tribunal, torcendo por um
milagre. Quantas vezes mais teria de ir lá? Abdo me avisara que meu caso era
bastante incomum. Mas o que fazem os juízes quando enfrentam um caso desses?
Estou
aprendendo a resposta com Shada. Todos dizem que ela é uma das melhores
advogadas do Iêmen e luta pelos direitos das mulheres. É bonita e tem cheiro de
jasmim. Assim que a vi, gostei dela. Não cobre o rosto. Usa uma capa comprida,
preta e sedosa, e apenas um véu colorido na cabeça.
Quando veio falar comigo pela primeira vez, vi como me olhou
com grande emoção, antes de exclamar:”Céus!”. Depois, conferiu o relógio, abriu a agenda e reorganizou os
compromissos marcados, telefonando para familiares, amigos e colegas; várias
vezes eu a ouvi dizer:” Tenho de assumir um caso importantíssimo.”
Essa
mulher parece ter uma determinação infinita.
- Nujood, eu não a abandonarei – ela me sussurra. Sinto-me
segura ao seu lado. Ela sabe como achar as palavras exatas, e sua voz melodiosa
me calma.
- Pode me prometer que nunca mais voltarei à casa de meu
marido?
- Farei o possível para impedir que ele volte a machucá-la.
Mas você tem de ser forte, porque pode levar algum tempo. A parte mais difícil
já passou. A parte mais difícil foi ter forças para fugir, e isso você fez
muito bem. Agora, posso lhe fazer uma pergunta? Como conseguiu coragem para
fugir e ir ao tribunal?
- Coragem para fugi? Eu não agüentava mais as maldades dele.
Simplesmente não agüentava mais.
O divórcio
O
grande dia veio antes do que se esperava. O tribunal estava cheio. A campanha
de Shada nos meios de comunicação dera certo; eu nunca vira tantas câmeras.
Debaixo do meu véu preto, estou suando muito.
“Nujood,
um sorriso!”, grita um fotógrafo. Uma fila de câmeras se forma à minha frente.
Agarro-me a Shada. Seu aroma me tranqüiliza, aquele cheiro de jasmim que agora
conheço tão bem.
Lá no
fundo, me sinto totalmente paralisada, incapaz de me mexer. Como acontece um
divórcio? E se o monstro simplesmente disser não? E se ele ameaçar o juiz?
Na
entrada do tribunal, os câmeras começas a se acotovelar para conseguir um
ângulo melhor.
Tremo:
vejo aba e... o monstro sendo
escoltados por dois policiais. Os presos parecem furiosos. Ao passar à nossa
frente, o monstro baixa os olhos e depois se vira de repente para Shada.
- Cheia de si, eihn? – grunhe.
Shada
nem pisca. Seu olhar revela todo o desprezo que sente por ele. Aprendi muito
com ela.
- Não lhe dê ouvidos
– me diz.
Meu
coração pula. Quando ergo os olhos, vejo-me fitando os de aba. Ele parece tão nervoso! “Honra”, diz. E ao ver seu rosto,
começo a entender o que significa essa palavra tão complicada.
Vejo
nos olhos do meu aba que ele está
zangado e envergonhado ao mesmo tempo. Estou furiosíssima com ele, mas não
posso deixar de sentir pena também. O respeito dos outros homens: eis o que é
tão importante aqui.
Mohammad
AL-Ghazi, juiz-presidente do tribunal, senta-se atrás da sua mesa alta. O juiz
Abdo ocupa a cadeira ao lado dele.
- Em nome de Deus Todo-Poderoso e Misericordioso, declaro
aberta a sessão deste tribunal – anuncia AL-Ghazi, fazendo sinal para nos
aproximarmos.
Shada
me sinaliza para segui-la. À nossa esquerda, aba e o monstro também avançam. Sinto a multidão ferver atrás de
nós. Nesse exato momento, parte de mim daria tudo pra ser um minúsculo
camundongo.
É a vez
de o juiz Abdo falar:
- Temos aqui o caso de uma menininha que foi casada contra o
seu consentimento. Depois que o contrato de casamento foi assinado sem o seu
conhecimento, ela foi levada à força para a província de Hajja. Lá, o marido a
agrediu sexualmente, quando ela sequer atingira a puberdade e não estava pronta
para ter relações sexuais. Também a espancou e insultou. Ela veio aqui hoje
para pedir o divórcio.
Al-Ghazi
bate na mesa algumas vezes com um martelinho de madeira.
- Escutem-me com atenção – diz ele à criatura que odeio – O
senhor se casou com essa menininha há dois meses, dormiu com ela, bateu nela. É
verdade? Sim ou Não?
O
monstro pisca e responde:
- Não, não é verdade! Ela e o pai concordaram com o
casamento.
Agarro-me
à capa de Shada e digo: “Ele está mentindo!”.
O juiz
volta para o meu pai.
-O senhor concordou com o casamento?
- Concordei.
- Que idade tem sua filha?
- Minha filha tem 13 anos.
Treze?
Ninguém nunca me disse que eu tinha 13 anos. Torço as mãos, tentando me
acalmar.
- Casei minha filha porque temia que fosse seqüestrada.
Não
entendo nada do que ele diz. Suas respostas são vagas e complicadas, e as
perguntas do juiz ficam cada vez mais incompreensíveis. As vozes se elevam. Os
acusados se defendem. O barulho na sala aumenta enquanto meu coração bate mais
depressa.
O juiz
faz um sinal para que sigamos até a outra sala, longe do público.
- Faez Ali Thamer, o senhor consumou o casamento? Sim ou
não? – pergunta o juiz.
Prendo
a respiração.
- Consumei – admite o monstro – Mas fui gentil com ela, fui
cuidadoso. Não bati nela.
A
resposta dele é como um tapa na cara, que me fez lembrar todos aqueles outros
tapas, os insultos, o sofrimento.
- Isso não é verdade! – berro, descontrolada de raiva.
Todos
se viram para me olhar. Mas sou a primeira a me espantar com a explosão. Depois disso, tudo aconteceu depressa. O monstro diz que meu pai o traiu quando
mentiu sobre minha idade. Aí aba fica
furioso e diz que ele concordara em esperar até que eu fosse mais velha para me
tocar. O monstro anuncia que está disposto a aceitar o divórcio, mas com uma
condição: que meu pai devolva o dote. E aba
replica que nunca recebeu nem um centavo.
É como
uma feira! Quanto? Quando? Como?
No fim
sou salva pela decisão do juiz, que anuncia:
- O divórcio será concedido.
16 de
setembro de 2008
O
divórcio mudou a minha vida. Quando saio às ruas, as mulheres me chamam para me
dar os parabéns. Recentemente, saí da casa do meu tio e voltei a morar com meus
pais. É como se fingíssemos esquecer o que houve.
Meus
pais se mudaram para outro bairro. Aqui posso ficar de olho em Haïfa. Se alguém
ousar pedir a mão dela, protestarei. E, se ninguém me der ouvidos, chamarei a
polícia.
Meus
pesadelos pararam há algumas semanas.
Agora, sonho com a escola. Uma associação humanitária internacional paga
a escola para mim e Haïfa. Quando crescer, serei advogada como Shada, para
defender outras menininhas como eu.
Uma das
professoras nos convida a sentar nas cadeiras. Escolho uma perto da janela. Com
meu uniforme verde e branco, sou apenas uma das 50 meninas da classe, aluna do
segundo ano da escola primária. Quando voltar para casa, terei exercícios e
desenhos coloridos para fazer.
Hoje,
finalmente sinto que me tornei uma menina normal de novo. Como antes. Sou
apenas eu.
Epílogo: em abril de
2009, o parlamento iemenita aprovou uma nova lei que eleva a idade de
consentimento legal para 17 anos, derrubada no dia seguinte por pressão dos
partidos conservadores de oposição. A mudança da idade de consentimento legal
ainda está sendo negociada.
Amiga Marcia,
ResponderExcluirUma história triste porém com um final decente, merecido e pensado,é algo real, e nos entristece saber que isto exista e que em algum lugar deste mundo existam crianças nas mãos de monstros como estes, e pais que não são pais para compartilharem com tais atos..
Abraços...gostei muito deste relato..